BOLA DE JORNAL
{WRITTEN BY WHILLY}
As coisas sempre foram como sempre, e duvido eu que fossem realmente mudar, entretanto eu já não fazia questão de pará-lo, eu não me importei antes e não me importaria agora. Eu sempre gostei dele da forma que ele é, inteiramente, incondicionalmente, e ele, de alguma forma, me amava com a mesma intensidade.
Eu caminhei pela rua, estava faltando a aula mais uma vez, mas que diferença faria? Nenhuma, afinal, ninguém me cobra ir a escola, nem mesmo vão algum dia cobrar, um diploma não salvará minha vida, muito menos me sustentará em um lugar como o que vivo. Não temos regras, não seguimos as leis, e a única coisa que podemos dizer e que agora não estamos mortos, o futuro é incerto, deliciosamente incerto.
Destranquei a porta do apartamento, eu naturalmente tinha a chave, algo muito doce de Sean, ele me ofereceu, embora suas razões não fossem um pouco... Incomodas, “ Caso aconteça alguma coisa comigo, você poderá entrar e pegar o que quiser, ou talvez morar aqui, é de sua escolha”, ele se preocupava com coisas tolas.
- Oi, Sean! – meu tom era feliz, como sempre quando estava ao lado dele.
- Oi, Nina – o tom comum...
Entrei cuidadosamente, ele estava no sofá em frente a Tv, assistindo alguma coisa tola, seus olhos se voltaram para mim, cuidadosos, como todas ás vezes em que ele esperava de mim alguma repreensão por agir da forma errada, mas eu nunca o repreendia, era impossível suportar uma briga entre nos dois. Meus olhos buscaram o que havia de errado, não foi difícil encontrar, havia uma grande poça vermelha no centro da sala, ela se estendia até o corredor, virando a direita, sumindo de meus olhos, o vermelho reluzia, indicando que aconteceu a pouco tempo, meus olhos ficaram por alguns segundos vidrados nos opostos diante destes, o vermelho brilhante e o chão sujo e encardido.
- Wou! – eu falei ainda olhando fixamente para o poça, vendo perfeitamente meu reflexo.
- Nina, eu... – era o tom suplicante, triste e arrependido, ele não gostava se me assustar, uma vez me confidenciou que temia apenas uma coisa, me perder, e mesmo que aquelas palavras parecessem pesadas e depressivas na voz dele, eu não tive como não me sentir interiormente bem.
- Eu não ligo... – falei indiferente, pulei cuidadosamente a grande poça de sangue existente entre aonde eu estava e o sofá, ao passar olhei discretamente para o rastro, eu não precisava imaginar aonde ele acabava. Era sempre no mesmo local, o último quarto do pequeno e claustrofóbico apartamento.
Sentei-me cuidadosamente ao seu lado, retirando o tênis e me encolhendo, apoiando meu corpo no dele, seu braço ao redor de mim, fazendo com que nossos corpos ficassem ainda mais próximos.
- Então – meu tom era o mais casual possível – quem foi?
Não era necessário uma explicação para saber do que eu estava falando, ele primeiramente não me respondeu, e ficamos no silêncio, quebrado apenas por suspiros da parte dele, eu apenas me mantinha quieta, sentindo seu peito subir e descer a cada respiração pesada.
- Jack... – a voz franca, senti seus dedos desesperados contra minha pele, temendo que eu me assustasse e corresse dele, a reação de sempre, o medo de sempre, e a reação de sempre, minha indiferença, eu passei meus braços por seu pescoço, fazendo com que ele se sentisse melhor, eu nunca fugiria dele, nunca.
Jack... Eu o conhecia, era um tonto, ele havia me irritado na semana passado, e em seguida brigado com Sean, ele era um delinqüente, era, não era mais e com certeza nunca mais seria. Entretanto era um delinqüente diferente de Sean, Jack era muito tolo e inofensivo, seu máximo era uma simples briga, um simples roubo, uma simples provocação, Sean por outro lado era mais... Mais ameaçador, embora agisse com menos freqüência, quando agia o preço era maior, a palavra simples não combinava com Sean.
Não era a primeira vez que algo deste tipo acontecia, se não me engano Jack era o terceiro deste mesmo mês. Nick e Harry haviam sido os primeiros, e com o que me lembro Nick foi antes, ele era tolo e descuidado, pelo que sei morreu por uma aposta, tolo e descuidado, roubar algo de Sean, uma aposta estúpida, claro, Sean era um dos mais temidos, se não o mais temido, do colégio, bem, acho que ele acabou perdendo no final, mas ninguém seria capaz de cobrar, seja pela vitoria ou pela perda. Harry foi logo em seguida, ele era muito amigo de Nick, talvez amigos demais, acho que morreu tentando vingar Nick, talvez? Quem sabe? Harry veio abordar Sean aqui em casa, neste mesmo apartamento. Agora, com o tempo que passou, eu já não sei dizer se as manchas de sangue seco ao lado do sofá são de Nick ou de Harry, mas faria alguma diferença? Duvido... Nunca me fez falta não saber...
Eu fiquei parada, poderia ficar ali para sempre, a eternidade não poderia ser mais confortável. Mas Sean não gostava de minha presença a noite, ele temia que alguém o procurasse e não pudesse me defender, preocupações tolas como sempre, entretanto ele dava sempre uma segunda desculpa, a de que meus pais ficariam preocupados... Como se eu realmente fosse me importar com isso.
Eu não poderia visitar Sean diariamente, ele achava perigoso, era nessas horas em que eu sentia ódio dele, sentia ódio por fazer com que ficássemos tão separados, no momento seguinte sentia culpa, pois ele estava se ausentando para me proteger, e por fim ficava com raiva de mim por não poder ser mais útil, menos frágil e quebradiça. Até que eu finalmente sentia ódio da cidade, por ser essa droga toda! Se fosse menos violenta eu poderia ter o meu Sean ao meu lado! Era por isso que não sentia pena de nenhum dos que Sean matava, eles atrapalhavam minha vida, menos deles era uma melhoria, eu poderia por fim ter meu Sean ao meu lado.
As semanas se passaram, a cidade nunca melhorava, nem nunca melhoraria, estávamos acomodados aquela situação, qual o problema de estar andando e morrer, morreríamos algum dia, e se não era a nossa hora alguém nos vingaria, era sempre assim, qual o medo então? Além do mais o que poderíamos perder em vida? Não era muita coisa, pelo menos daquilo que tínhamos posse.
Era uma sexta quando consegui finalmente voltar a ver Sean, ele não ia muito a escola, estávamos ambos no terceiro colegial, ele dizia que logo tudo acabaria, então qual o motivo de ficar indo? Eu concordava, mais pelo fato de que se ele não ia por qual motivo eu iria, um futuro? E existia futuro aqui? Sem contar que para as cidades ao redor e metrópoles nós éramos considerados matadores, nunca seriamos devidamente respeitados porque gostavam de nós, somente pelo medo que tinham, e isso me dava nos nervos. Não havia um futuro limpo, pelo menos não para mim, a escola não me servia, quem fosse ficar limpo no futuro deveria ir, eu não ia... Então por que diabos tinha que me submeter a tudo isso?
Eu sempre fui bem na escola, mas isso não era realmente um incentivo para continuar indo, além do mais nenhum dos diretores gostavam de mim, eu sempre fui encrenqueira e era mudada de escola com muita freqüência, lembro da fúria de meus pais... Hoje ela se transformou em indiferença. Em um único ano mudei de escola três vezes, duas delas por briga, uma por destruição de propriedade escola... Grande diferença...
Eu tinha um futuro, manchado, perigoso, destrutivo, instável, mas era um futuro, e era melhor do que o seu, e melhor do que o de qualquer outro! E ele era só meu!
Eu abri a porta com a minha chave, estava feliz de estar entrado novamente naquele apartamento, mesmo que velho e puído, era o melhor local para mim, um canto esquecido em uma cidade perigosa, aonde pedaços das paredes caiam mostrando ás vezes os tijolos laranjas, as rachaduras por todos os lados, e é claro as manchas de sangue velho na paredes que deveria ser branca, o pó espalhado pelo chão e pelos tapetes, o sofá desgastado e antigo, a Tv de péssima qualidade e de recepção pior ainda, a cozinha com a madeira corroída por cupins e as panelas de alumínio manchadas pelo demasiado uso, essa era a minha vida... Se Sean estivesse nela.
Uma vez pensei o que aconteceria comigo se não tivesse Sean ao meu lado, eu tive apenas a resposta de que estaria segura, vivendo feliz comigo mesma, eu poderia ter um futuro limpo, aonde poderia ser matemática, eu adorava essa matéria, ou até mesmo escritora, eu sempre tive uma queda por essa profissão, me parecia nobre, algo que não se encaixava mais com o futuro que estava vivendo. Sem Sean eu faria tanta coisa...
Sean não estava sentado ao sofá, nem em nenhum local da casa, ele deveria ter saído para fazer um de seus serviços. Eu me sentei deitei confortavelmente no local que ele costumava ocupar na sala, fiquei ali por muito tempo, o apartamento sem Sean era tedioso, quase tinha a capacidade de se tornar belo desde o dia em que o conheci.
Eu estava sentada perto da grade da escola, observando as pessoas passarem na rua, e quando o vi meus olhos ficaram presos nele, eu tinha apenas doze anos, mas já era considerada uma delinqüente, mas era o mesmo estilo de delinqüente que Jack foi, simples, sem realmente ser perigosa, uma das pessoas que passou por minha visão foi Sean, ele não entrou na escola, eu achava naquela época que faltar a escola era ser um total idiota, me chamou a atenção a forma com que ele fazia isso, ele nem mesmo hesitava, não havia remorso, nem um pingo de arrependimento, e ele era tão estranhamente perfeito, como se as coisas ao redor se arrumassem para ele, seus olhos se encontraram com os meus, lembro-me que ele parou de andar e ficou me olhando, da mesma forma que eu fiquei, sem expressão, somente analisando.
Não sei o que ele viu em mim naquela época, não era muito alta, era magrela e sem forma, a pele branca de mais com o cabelo claro curto, demorou alguns segundos, até que ele simplesmente sorriu e acenou, eu fiquei pasma e constrangida da hora, mas acenei de volta, ele se voltou a seu caminho e foi embora... Eu me perguntei para onde ele estaria indo.
Os dias se passaram e eu sempre ficava ali observando, ele sempre que passava por lá ficava me observando, eu acenava para ele, ele sorria e acenava de volta. Uma manhã ele não veio... Eu não o vi na rua e fiquei esperando para vê-lo na grade antes do sinal tocar, o sinal tocou, ele não havia vindo... Todas ás vezes que isso acontecia eu ficava triste, era tão bom ter o apoio de seus olhos, era tão bom a doçura de seu sorriso.
Caminhei silenciosamente aborrecida em direção a minha sala de aula, mas antes que conseguisse chegar a porta uma mão encostou em meu ombro, como reflexo, eu levantei o pulso do braço contrário para socar o imbecil que estava encostando em mim, por muito pouco eu não soquei o garoto, por muito pouco, pois assim que meus olhos observaram a figura eu parei... Era o menino da grade! O menino que eu via todos os dias! Eu e ele estávamos juntos... Eu nunca fiquei tão feliz, a partir deste dia ele passou a vir mais na escola, alias, ele antes estudava em outra escola, e quando conseguiu transferência prometeu comparecer a escola com mais entusiasmo. Quando Sean lembra daquele dia ele fala que eu o soquei, mas não com punhos, simplesmente com o meu amor. Acho que já nos amávamos desde a primeira vez que nos vimos.
Aos quinze começamos a namorar oficialmente, foi realmente engraçado ele falando com meu pai, eu falei que não precisava, mas ele queria ser um bom garoto, como se ele não fosse, meu pai não aprovou, e eu discuti com ele, no fim ele teve que aceitar, pois eu havia falado que se ele não aceitasse eu sairia de casa, eu poderia ter um lar junto de Sean, ele temia isso e aceitar foi o melhor, acho que ele esperava que alguma hora esse amor passasse, assim como o dele e de minha mãe passaram. Eu o decepcionei nisso, amando Sean mais com o tempo.
Eu era a decepção de meus pais, acho que eles gostam do fato de terem tido somente uma filha, qualquer irmão a mais com certeza seria um problema, eu já valia por uns três. Meu pai sempre teve muita expectativa, um futuro brilhante, uma vida limpa, uma família feliz, mas eu o decepcionei em tudo, acho que parte dele compreendia, a outra parte nunca poderia se contentar com o que quer que eu me tornasse. Minha mãe não se importava, talvez ela visse em mim muito de seus erros, os seus melhores e mais felizes erros, ela nunca opinava em nada, quem sabe ela esperasse para mim um lindo final felizes para sempre?
Aos quinze, além de namorarmos, Sean matou sua primeira pessoa, uma briga pesada, eu nunca soube o motivo, mas ele não teve como me esconder o fato de tê-la matado, a partir deste dia ele temeu me perder, e a partir deste dia eu disse a mim mesma para escolher um futuro, eu ainda seguia o futuro que eu sempre havia imaginado, aquele que tracei inconscientemente no momento que conheci Sean. Um futuro manchado.
O tempo passou, meus pais deixaram de se preocupar, pelo menos meu pai foi assim, não sei bem quanto a minha mãe, eu ás vezes acho que ela está ao meu lado com sua preocupação silenciosa, esperando para me ajudar, mas eu sou orgulhosa demais para cair, e mais orgulhosa para contar, se eu cair, vou cair em silêncio, com o olhar firme...
Eu tenho dezessete anos, terceiro colegial, não mudei muito, eu ainda me chamo Nina, ainda sou magra, anda tenho a pele pálida, ainda sou a decepção de minha casa, ainda falto a escola, ainda tenho riscos de ser expulsa, ainda brigo, ainda sou encrenqueira... Ainda amo Sean, como se isso fosse acabar... E acabaria?
Sean foi minha vida a cinco anos, eu vivi por ele, eu respirei por ele, eu morreria por ele... Compensaria tudo isso? Por um garoto que sempre seria assim, sempre repleto de confusões, aonde cada uma delas me traria dor e a cada dia eu choraria por ele, seria como o dia que o conheci, ficar ansiosamente esperando na grade da escola, sem que ele sempre fosse entrar. Agonizante e sofrido. Valeria a pena?
Meus olhos estavam fechados, meu corpo relaxado no sofá, minha mente ainda vagando, mas eu ouvia os passos, eram os passos que eu havia aprendido a reconhecer em qualquer local, como se eles me chamassem, tão característicos que nunca poderiam ser esquecidos, nunca. Eles subiam silenciosamente a grande escada de metal, torta e desigual, arrastando-se com um peso que eu também conhecia, o peso que se eu desejasse ficar teria que suportar.
Eu me levantei, olhando o cômodo todo, seria aquele o meu futuro? Uma grande bola de jornal, era a melhor expressão para tudo ao meu redor, grande, amassada, desigual, suja, manchada e encardida. Eu transformaria minha vida em uma bola de jornal? Tudo o que tinha capacidade de ser por... Uma bola de jornal?
A porta se abriu, ele já sabia que eu estava ali, ele também conhecia meus movimentos, e como se estivéssemos ligados sabíamos se as coisas estariam bem ou não, acho que conseguimos isso com o tempo, muito tempo gasto juntos, muito tempo dispensado para o outro, ele para mim e eu para ele. A expressão que eu já conhecia, com o gosto metálico do ar que eu já havia aprendido a reconhecer e acostumar. Sangue.
Eu me levantei, andei feliz até ele, sorrindo timidamente, ele estava com a roupa vermelha, mostrando que no mínimo havia matado uma pessoa, não o incomodei perguntando que havia sido daquela vez, eu tinha uma certa aposta em Dan, ele era realmente hipócrita e irritante, ele havia de merecer, pelo que estive sabendo. Sean abaixou o olhar, triste? Nervoso? Arrependido?
Com medo... Eu era a única coisa que ele temia, eu poderia destruí-lo, eu poderia fazê-lo sofrer, poderia matá-lo aos poucos ou até rapidamente, ele nunca me machucaria, ele nunca me deixaria infeliz, nem que minha felicidade custasse mil vidas... Ele mataria todos para mim, e se necessário mataria a si próprio se necessário no final. Ele era meu. Mas... Eu nunca faria algo assim com ele, eu preferia minha morte a dele, preferia meu sangue manchando as coisas ao dele, preferia minha dor a dele, eu preferia vender minha alma para a felicidade dele. Será que deveria?
Eu o abracei, manchando minha blusa com o sangue que ele derramou, as mãos dele apenas acariciaram cuidadosamente meu cabelo, os olhos longe dos meus.
Eu deveria?
Não, não deveria...
Mas quem pode escolher o que amar? Quem dita a batida de um coração? Eu amava aquela bola de papel, mesmo manchada de tinta barata de jornal, ou sangue vermelho vivo, suja e desgastada, desbotando em algumas partes, ao todo uma grande e dispensável caixa de papelão, ridiculamente precária, hilariantemente quebradiça.
Entretanto era lá que havia o que eu amava. Sean. Dentro ou não destes destroços, na rua, em uma casa rica e grande, em uma universidade, era Sean o que eu amava.
Eu deveria?
Não, não deveria.
Mas eu alguma vez fiz o que devia ser feito?
Eu não fui na escola, eu escolhi brigar, eu cairia por meu orgulho, eu morreria por alguém que amava, eu fui expulsa por querer, eu provocava, eu desobedeci meus pais, eu me tornei uma decepção... e ainda assim eu sorri por tudo isso.
Eu não deveria.
Eu estava jogando um futuro brilhante, quem sabe perfeito, quem sabe maravilhoso, quem sabe? Eu poderia me redimir, e ser o que todos sonharam que eu seria, poderia ser tudo o que queriam que eu fosse, poderiam me amar incondicionalmente por minhas escolhas sensatas, mas eu ligava? Mas eu conseguiria sorrir depois disso tudo?
Não deveria.
Mas já estava feito.
Eu estava dentro de uma bola de jornal, velho, amarelado e sujo. Eu estava manchada com sangue vermelho. Eu estava com Sean. Eu não queria mais nada.
Nada me faria mais feliz... Eu era parte da bola de jornal.
Eu caminhei pela rua, estava faltando a aula mais uma vez, mas que diferença faria? Nenhuma, afinal, ninguém me cobra ir a escola, nem mesmo vão algum dia cobrar, um diploma não salvará minha vida, muito menos me sustentará em um lugar como o que vivo. Não temos regras, não seguimos as leis, e a única coisa que podemos dizer e que agora não estamos mortos, o futuro é incerto, deliciosamente incerto.
Destranquei a porta do apartamento, eu naturalmente tinha a chave, algo muito doce de Sean, ele me ofereceu, embora suas razões não fossem um pouco... Incomodas, “ Caso aconteça alguma coisa comigo, você poderá entrar e pegar o que quiser, ou talvez morar aqui, é de sua escolha”, ele se preocupava com coisas tolas.
- Oi, Sean! – meu tom era feliz, como sempre quando estava ao lado dele.
- Oi, Nina – o tom comum...
Entrei cuidadosamente, ele estava no sofá em frente a Tv, assistindo alguma coisa tola, seus olhos se voltaram para mim, cuidadosos, como todas ás vezes em que ele esperava de mim alguma repreensão por agir da forma errada, mas eu nunca o repreendia, era impossível suportar uma briga entre nos dois. Meus olhos buscaram o que havia de errado, não foi difícil encontrar, havia uma grande poça vermelha no centro da sala, ela se estendia até o corredor, virando a direita, sumindo de meus olhos, o vermelho reluzia, indicando que aconteceu a pouco tempo, meus olhos ficaram por alguns segundos vidrados nos opostos diante destes, o vermelho brilhante e o chão sujo e encardido.
- Wou! – eu falei ainda olhando fixamente para o poça, vendo perfeitamente meu reflexo.
- Nina, eu... – era o tom suplicante, triste e arrependido, ele não gostava se me assustar, uma vez me confidenciou que temia apenas uma coisa, me perder, e mesmo que aquelas palavras parecessem pesadas e depressivas na voz dele, eu não tive como não me sentir interiormente bem.
- Eu não ligo... – falei indiferente, pulei cuidadosamente a grande poça de sangue existente entre aonde eu estava e o sofá, ao passar olhei discretamente para o rastro, eu não precisava imaginar aonde ele acabava. Era sempre no mesmo local, o último quarto do pequeno e claustrofóbico apartamento.
Sentei-me cuidadosamente ao seu lado, retirando o tênis e me encolhendo, apoiando meu corpo no dele, seu braço ao redor de mim, fazendo com que nossos corpos ficassem ainda mais próximos.
- Então – meu tom era o mais casual possível – quem foi?
Não era necessário uma explicação para saber do que eu estava falando, ele primeiramente não me respondeu, e ficamos no silêncio, quebrado apenas por suspiros da parte dele, eu apenas me mantinha quieta, sentindo seu peito subir e descer a cada respiração pesada.
- Jack... – a voz franca, senti seus dedos desesperados contra minha pele, temendo que eu me assustasse e corresse dele, a reação de sempre, o medo de sempre, e a reação de sempre, minha indiferença, eu passei meus braços por seu pescoço, fazendo com que ele se sentisse melhor, eu nunca fugiria dele, nunca.
Jack... Eu o conhecia, era um tonto, ele havia me irritado na semana passado, e em seguida brigado com Sean, ele era um delinqüente, era, não era mais e com certeza nunca mais seria. Entretanto era um delinqüente diferente de Sean, Jack era muito tolo e inofensivo, seu máximo era uma simples briga, um simples roubo, uma simples provocação, Sean por outro lado era mais... Mais ameaçador, embora agisse com menos freqüência, quando agia o preço era maior, a palavra simples não combinava com Sean.
Não era a primeira vez que algo deste tipo acontecia, se não me engano Jack era o terceiro deste mesmo mês. Nick e Harry haviam sido os primeiros, e com o que me lembro Nick foi antes, ele era tolo e descuidado, pelo que sei morreu por uma aposta, tolo e descuidado, roubar algo de Sean, uma aposta estúpida, claro, Sean era um dos mais temidos, se não o mais temido, do colégio, bem, acho que ele acabou perdendo no final, mas ninguém seria capaz de cobrar, seja pela vitoria ou pela perda. Harry foi logo em seguida, ele era muito amigo de Nick, talvez amigos demais, acho que morreu tentando vingar Nick, talvez? Quem sabe? Harry veio abordar Sean aqui em casa, neste mesmo apartamento. Agora, com o tempo que passou, eu já não sei dizer se as manchas de sangue seco ao lado do sofá são de Nick ou de Harry, mas faria alguma diferença? Duvido... Nunca me fez falta não saber...
Eu fiquei parada, poderia ficar ali para sempre, a eternidade não poderia ser mais confortável. Mas Sean não gostava de minha presença a noite, ele temia que alguém o procurasse e não pudesse me defender, preocupações tolas como sempre, entretanto ele dava sempre uma segunda desculpa, a de que meus pais ficariam preocupados... Como se eu realmente fosse me importar com isso.
Eu não poderia visitar Sean diariamente, ele achava perigoso, era nessas horas em que eu sentia ódio dele, sentia ódio por fazer com que ficássemos tão separados, no momento seguinte sentia culpa, pois ele estava se ausentando para me proteger, e por fim ficava com raiva de mim por não poder ser mais útil, menos frágil e quebradiça. Até que eu finalmente sentia ódio da cidade, por ser essa droga toda! Se fosse menos violenta eu poderia ter o meu Sean ao meu lado! Era por isso que não sentia pena de nenhum dos que Sean matava, eles atrapalhavam minha vida, menos deles era uma melhoria, eu poderia por fim ter meu Sean ao meu lado.
As semanas se passaram, a cidade nunca melhorava, nem nunca melhoraria, estávamos acomodados aquela situação, qual o problema de estar andando e morrer, morreríamos algum dia, e se não era a nossa hora alguém nos vingaria, era sempre assim, qual o medo então? Além do mais o que poderíamos perder em vida? Não era muita coisa, pelo menos daquilo que tínhamos posse.
Era uma sexta quando consegui finalmente voltar a ver Sean, ele não ia muito a escola, estávamos ambos no terceiro colegial, ele dizia que logo tudo acabaria, então qual o motivo de ficar indo? Eu concordava, mais pelo fato de que se ele não ia por qual motivo eu iria, um futuro? E existia futuro aqui? Sem contar que para as cidades ao redor e metrópoles nós éramos considerados matadores, nunca seriamos devidamente respeitados porque gostavam de nós, somente pelo medo que tinham, e isso me dava nos nervos. Não havia um futuro limpo, pelo menos não para mim, a escola não me servia, quem fosse ficar limpo no futuro deveria ir, eu não ia... Então por que diabos tinha que me submeter a tudo isso?
Eu sempre fui bem na escola, mas isso não era realmente um incentivo para continuar indo, além do mais nenhum dos diretores gostavam de mim, eu sempre fui encrenqueira e era mudada de escola com muita freqüência, lembro da fúria de meus pais... Hoje ela se transformou em indiferença. Em um único ano mudei de escola três vezes, duas delas por briga, uma por destruição de propriedade escola... Grande diferença...
Eu tinha um futuro, manchado, perigoso, destrutivo, instável, mas era um futuro, e era melhor do que o seu, e melhor do que o de qualquer outro! E ele era só meu!
Eu abri a porta com a minha chave, estava feliz de estar entrado novamente naquele apartamento, mesmo que velho e puído, era o melhor local para mim, um canto esquecido em uma cidade perigosa, aonde pedaços das paredes caiam mostrando ás vezes os tijolos laranjas, as rachaduras por todos os lados, e é claro as manchas de sangue velho na paredes que deveria ser branca, o pó espalhado pelo chão e pelos tapetes, o sofá desgastado e antigo, a Tv de péssima qualidade e de recepção pior ainda, a cozinha com a madeira corroída por cupins e as panelas de alumínio manchadas pelo demasiado uso, essa era a minha vida... Se Sean estivesse nela.
Uma vez pensei o que aconteceria comigo se não tivesse Sean ao meu lado, eu tive apenas a resposta de que estaria segura, vivendo feliz comigo mesma, eu poderia ter um futuro limpo, aonde poderia ser matemática, eu adorava essa matéria, ou até mesmo escritora, eu sempre tive uma queda por essa profissão, me parecia nobre, algo que não se encaixava mais com o futuro que estava vivendo. Sem Sean eu faria tanta coisa...
Sean não estava sentado ao sofá, nem em nenhum local da casa, ele deveria ter saído para fazer um de seus serviços. Eu me sentei deitei confortavelmente no local que ele costumava ocupar na sala, fiquei ali por muito tempo, o apartamento sem Sean era tedioso, quase tinha a capacidade de se tornar belo desde o dia em que o conheci.
Eu estava sentada perto da grade da escola, observando as pessoas passarem na rua, e quando o vi meus olhos ficaram presos nele, eu tinha apenas doze anos, mas já era considerada uma delinqüente, mas era o mesmo estilo de delinqüente que Jack foi, simples, sem realmente ser perigosa, uma das pessoas que passou por minha visão foi Sean, ele não entrou na escola, eu achava naquela época que faltar a escola era ser um total idiota, me chamou a atenção a forma com que ele fazia isso, ele nem mesmo hesitava, não havia remorso, nem um pingo de arrependimento, e ele era tão estranhamente perfeito, como se as coisas ao redor se arrumassem para ele, seus olhos se encontraram com os meus, lembro-me que ele parou de andar e ficou me olhando, da mesma forma que eu fiquei, sem expressão, somente analisando.
Não sei o que ele viu em mim naquela época, não era muito alta, era magrela e sem forma, a pele branca de mais com o cabelo claro curto, demorou alguns segundos, até que ele simplesmente sorriu e acenou, eu fiquei pasma e constrangida da hora, mas acenei de volta, ele se voltou a seu caminho e foi embora... Eu me perguntei para onde ele estaria indo.
Os dias se passaram e eu sempre ficava ali observando, ele sempre que passava por lá ficava me observando, eu acenava para ele, ele sorria e acenava de volta. Uma manhã ele não veio... Eu não o vi na rua e fiquei esperando para vê-lo na grade antes do sinal tocar, o sinal tocou, ele não havia vindo... Todas ás vezes que isso acontecia eu ficava triste, era tão bom ter o apoio de seus olhos, era tão bom a doçura de seu sorriso.
Caminhei silenciosamente aborrecida em direção a minha sala de aula, mas antes que conseguisse chegar a porta uma mão encostou em meu ombro, como reflexo, eu levantei o pulso do braço contrário para socar o imbecil que estava encostando em mim, por muito pouco eu não soquei o garoto, por muito pouco, pois assim que meus olhos observaram a figura eu parei... Era o menino da grade! O menino que eu via todos os dias! Eu e ele estávamos juntos... Eu nunca fiquei tão feliz, a partir deste dia ele passou a vir mais na escola, alias, ele antes estudava em outra escola, e quando conseguiu transferência prometeu comparecer a escola com mais entusiasmo. Quando Sean lembra daquele dia ele fala que eu o soquei, mas não com punhos, simplesmente com o meu amor. Acho que já nos amávamos desde a primeira vez que nos vimos.
Aos quinze começamos a namorar oficialmente, foi realmente engraçado ele falando com meu pai, eu falei que não precisava, mas ele queria ser um bom garoto, como se ele não fosse, meu pai não aprovou, e eu discuti com ele, no fim ele teve que aceitar, pois eu havia falado que se ele não aceitasse eu sairia de casa, eu poderia ter um lar junto de Sean, ele temia isso e aceitar foi o melhor, acho que ele esperava que alguma hora esse amor passasse, assim como o dele e de minha mãe passaram. Eu o decepcionei nisso, amando Sean mais com o tempo.
Eu era a decepção de meus pais, acho que eles gostam do fato de terem tido somente uma filha, qualquer irmão a mais com certeza seria um problema, eu já valia por uns três. Meu pai sempre teve muita expectativa, um futuro brilhante, uma vida limpa, uma família feliz, mas eu o decepcionei em tudo, acho que parte dele compreendia, a outra parte nunca poderia se contentar com o que quer que eu me tornasse. Minha mãe não se importava, talvez ela visse em mim muito de seus erros, os seus melhores e mais felizes erros, ela nunca opinava em nada, quem sabe ela esperasse para mim um lindo final felizes para sempre?
Aos quinze, além de namorarmos, Sean matou sua primeira pessoa, uma briga pesada, eu nunca soube o motivo, mas ele não teve como me esconder o fato de tê-la matado, a partir deste dia ele temeu me perder, e a partir deste dia eu disse a mim mesma para escolher um futuro, eu ainda seguia o futuro que eu sempre havia imaginado, aquele que tracei inconscientemente no momento que conheci Sean. Um futuro manchado.
O tempo passou, meus pais deixaram de se preocupar, pelo menos meu pai foi assim, não sei bem quanto a minha mãe, eu ás vezes acho que ela está ao meu lado com sua preocupação silenciosa, esperando para me ajudar, mas eu sou orgulhosa demais para cair, e mais orgulhosa para contar, se eu cair, vou cair em silêncio, com o olhar firme...
Eu tenho dezessete anos, terceiro colegial, não mudei muito, eu ainda me chamo Nina, ainda sou magra, anda tenho a pele pálida, ainda sou a decepção de minha casa, ainda falto a escola, ainda tenho riscos de ser expulsa, ainda brigo, ainda sou encrenqueira... Ainda amo Sean, como se isso fosse acabar... E acabaria?
Sean foi minha vida a cinco anos, eu vivi por ele, eu respirei por ele, eu morreria por ele... Compensaria tudo isso? Por um garoto que sempre seria assim, sempre repleto de confusões, aonde cada uma delas me traria dor e a cada dia eu choraria por ele, seria como o dia que o conheci, ficar ansiosamente esperando na grade da escola, sem que ele sempre fosse entrar. Agonizante e sofrido. Valeria a pena?
Meus olhos estavam fechados, meu corpo relaxado no sofá, minha mente ainda vagando, mas eu ouvia os passos, eram os passos que eu havia aprendido a reconhecer em qualquer local, como se eles me chamassem, tão característicos que nunca poderiam ser esquecidos, nunca. Eles subiam silenciosamente a grande escada de metal, torta e desigual, arrastando-se com um peso que eu também conhecia, o peso que se eu desejasse ficar teria que suportar.
Eu me levantei, olhando o cômodo todo, seria aquele o meu futuro? Uma grande bola de jornal, era a melhor expressão para tudo ao meu redor, grande, amassada, desigual, suja, manchada e encardida. Eu transformaria minha vida em uma bola de jornal? Tudo o que tinha capacidade de ser por... Uma bola de jornal?
A porta se abriu, ele já sabia que eu estava ali, ele também conhecia meus movimentos, e como se estivéssemos ligados sabíamos se as coisas estariam bem ou não, acho que conseguimos isso com o tempo, muito tempo gasto juntos, muito tempo dispensado para o outro, ele para mim e eu para ele. A expressão que eu já conhecia, com o gosto metálico do ar que eu já havia aprendido a reconhecer e acostumar. Sangue.
Eu me levantei, andei feliz até ele, sorrindo timidamente, ele estava com a roupa vermelha, mostrando que no mínimo havia matado uma pessoa, não o incomodei perguntando que havia sido daquela vez, eu tinha uma certa aposta em Dan, ele era realmente hipócrita e irritante, ele havia de merecer, pelo que estive sabendo. Sean abaixou o olhar, triste? Nervoso? Arrependido?
Com medo... Eu era a única coisa que ele temia, eu poderia destruí-lo, eu poderia fazê-lo sofrer, poderia matá-lo aos poucos ou até rapidamente, ele nunca me machucaria, ele nunca me deixaria infeliz, nem que minha felicidade custasse mil vidas... Ele mataria todos para mim, e se necessário mataria a si próprio se necessário no final. Ele era meu. Mas... Eu nunca faria algo assim com ele, eu preferia minha morte a dele, preferia meu sangue manchando as coisas ao dele, preferia minha dor a dele, eu preferia vender minha alma para a felicidade dele. Será que deveria?
Eu o abracei, manchando minha blusa com o sangue que ele derramou, as mãos dele apenas acariciaram cuidadosamente meu cabelo, os olhos longe dos meus.
Eu deveria?
Não, não deveria...
Mas quem pode escolher o que amar? Quem dita a batida de um coração? Eu amava aquela bola de papel, mesmo manchada de tinta barata de jornal, ou sangue vermelho vivo, suja e desgastada, desbotando em algumas partes, ao todo uma grande e dispensável caixa de papelão, ridiculamente precária, hilariantemente quebradiça.
Entretanto era lá que havia o que eu amava. Sean. Dentro ou não destes destroços, na rua, em uma casa rica e grande, em uma universidade, era Sean o que eu amava.
Eu deveria?
Não, não deveria.
Mas eu alguma vez fiz o que devia ser feito?
Eu não fui na escola, eu escolhi brigar, eu cairia por meu orgulho, eu morreria por alguém que amava, eu fui expulsa por querer, eu provocava, eu desobedeci meus pais, eu me tornei uma decepção... e ainda assim eu sorri por tudo isso.
Eu não deveria.
Eu estava jogando um futuro brilhante, quem sabe perfeito, quem sabe maravilhoso, quem sabe? Eu poderia me redimir, e ser o que todos sonharam que eu seria, poderia ser tudo o que queriam que eu fosse, poderiam me amar incondicionalmente por minhas escolhas sensatas, mas eu ligava? Mas eu conseguiria sorrir depois disso tudo?
Não deveria.
Mas já estava feito.
Eu estava dentro de uma bola de jornal, velho, amarelado e sujo. Eu estava manchada com sangue vermelho. Eu estava com Sean. Eu não queria mais nada.
Nada me faria mais feliz... Eu era parte da bola de jornal.